"Eliana obedeceu, embora contrariada. A sua vontade era fugir, refugiar-se em si mesma e na possibilidade de chorar até sentir a mágoa toda a ir embora.
David esperou que todos saíssem, subiu as escadas, galgando os degraus da plateia dois a dois e foi desligar as luzes, deixando apenas o foco na sua marcação.
Eliana colocou-se no lugar, mesmo por baixo da luz. Sentia a incerteza domina-la. O medo de não conseguir desligar-se nem um pouco de tudo quanto a consumia no momento. Ali, sozinha no palco, envolvida pela escuridão e iluminada por um só foco de luz, sentia-se nua. Desprovida de protecçao alguma. Nem sentiu os passos de David de volta ao palco, e só deu pela sua presença quando este já a segurava.
-Agora quero que penses apenas na Adael. -Soprou-lhe ao ouvido, num tom praticamente inaudível.
-Concentra-te em quem ela é. No que ela sente. Em como sente cada toque.
Enquanto falava, David rodava as mão de Eliana na sua, tocando ao de leve com as pontas dos dedos nos dela. Rodou o seu pulso a volta do dela, num toque tao suave, que ela mal sentiu os pelos dele a acariciarem-lhe a pele.
David rodou sobre si mesmo e á volta de Eliana.
-Sente, vive, sê…
Eliana encontrava-se já num ambiente diferente. Mas não era Adael quem escutava o espirito, era sim, ela quem ouvia as palavras de David como uma melodia viciante.
Sentia o vento que o movimento dos seus corpos produzia. A dança que descreviam em redor um do outro. O sopro quente que conferia luz mesmo nos recantos mais sombrios do espaço que os recebia.
David tomou-a nos braços, inclinou-a, suportando-a quase á altura de meio metro do chão, apoiando-se num joelho e encostando as costas dela no seu tronco. Olhou-a nos olhos com o seu sorriso desafiador.
Envolvida no momento, cansada de lutar por se afastar da realidade, Eliana deixou-se conduzir naquela dança. Era ela, sempre ela que dançava.
David tocou-lhe ao de leve no rosto e num repente aproximou-se, beijando-a.
A envolvência dos seus lábios, o toque quente da sua língua.
Eliana entregou-se ao momento. Enlaçados, encobertos pela escuridão, eram todo eles luz. Foi um abraço igual a 1000 abraços, um beijo igual a 1000 beijos.
Como que acordada de um sonho, Eliana empurrou David, ao lembrar-se da imagem que ainda á pouco presenciara. Ali mesmo, naquele palco. A cumplicidade entre ele e Cila, a troca de seduções entre eles.
David estancou, com um ar de surpresa no olhar.
Eliana fez força contra o peito dele e ele apoiou-a enquanto a ajudava a levantar-se.
-Desculpa. – disse ele, segurando a mão de Eliana, ainda posta contra o seu peito.
-Deixei-me ir pela personagem…
Eliana afastou-se, virando-lhe costas no palco. Voltou atrás, para junto dele, de lágrimas nos olhos.
-Eu não sou actriz. Não consigo desligar-me de mim e viver só a personagem. Não consigo ver o espectaculo num todo. Ve-lo de fora, como singularidade de outrem.
As lágrimas corriam-lhe pelo rosto num ritmo constante. As mãos tremiam-lhe enquanto falava. Continuou, olhando-o nos olhos.
-Sou eu no palco, sou eu nos ensaios e sou eu aqui, agora.
David ouvia de ar perplexo e tristeza nos olhos. O verde ponteado de cinzas que agora brilhava na eminencia das lágrimas.
-E aqui, agora, sou eu também. – respondeu-lhe num suspiro.
Uma raiva apoderou-se de Eliana.
Ainda há alguns minutos estava na maior cumplicidade com Cila. Seria ele também, ou qualquer personagem diferente?
-Tu sim és um actor. – respondeu-lhe a rapariga por entre lágrimas, elevando o tom de voz, que ecoou pelo espaço.
-Um actor capaz de encarnar vários papeis. Uma serie de personagens que não consigo ler. Capaz de me enlear nos seus monólogos e diálogos fazendo-me duvidar de quem sou e do que desejo… e depois cair.
Girou sobre si mesma, e correu plateia acima, ofuscada pelas luzes que assinalavam os lugares e reflectiam nos seus olhos marejados de lágrimas."
In: Sopro de Luz
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