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18 de outubro de 2012

Sopro de Luz 7

"Eliana olhou a amiga nos olhos. Gabriela sempre tinha sido fantástica com ela. Quando tinha mudado com Luís para o apartamento Gabriela passava la todas as horas do dia. Tinha sido um ombro amigo para chorar, um conforto quando as saudades da família apertavam. Sentia poder contar-lhe pelo menos uma parte de tudo o que estava a sentir. Partilhar a carga como a mãe lhe tinha dito.
- O mal é que eu gostei Gabi. O mal é que eu não posso gostar. Não agora. Não tão cedo. O Bruno morreu ainda não fez um ano e dou por mim feliz em tantos momentos que sinto que não sou merecedora de algum dia ter tido o seu amor.
-Não digas disparates Eli. Claro que podes sentir. Ele ia querer que sentisses. Que vivesses. Ele amava quem tu és. E enquanto te mantiveres assim serás sempre merecedora de todo o amor. Não só dele como o de todos os que te rodeiam.
Eliana sentia as lágrimas a anunciarem-se no tremer do seu lábio, no calor que lhe aflorava os olhos.
-E digo-te mais Eliana, teres momentos de felicidade é pouco. Mereces ser feliz por inteiro e era isso que o Bruno iria desejar para ti.
- Mas se fosse eu a ter morrido sei que ele estaria a sofrer por mim e não a escolher roupas para uma festa.
Gabriela pegou na mão da amigo sobre a mesa do café. Olhou-a nos olhos como uma mãe que acarinha um filho.
- Ele partiu e tu ficaste. Houve alturas que todos achávamos que te tínhamos perdido a ti também. Mas tu tens tanto para dar dentro de ti. Não podes de forma alguma fechar-te para ao mundo. Porque o mundo é egoísta e exige de ti que dês e te entregues, mesmo perdendo o que amas. Não estás a comprar roupas por teres esquecido que ele viveu. Estas a viver por saberes que estas viva, mesmo com a infelicidade de ele ter morrido.
Eliana colocou a mão livre sobre a da amiga. Era tão bom ser confortada assim, por alguém que não exigia mais respostas do que as que estava pronta para dar. Por isso mesmo, por não se ver na obrigação de dizer mais nada, por ser tão natural conversar com Gabriela deu por si a dizer.
- Achas que algum dia vou ser amada de novo? Que vou permitir-me amar? Eu amo o Bruno. Ele é parte de mim, está vivo aqui. – disse pousando a mão sobre o peito. – está vivo na nossa musica quando toca no rádio, está vivo quando entro nos portões da escola, está vivo quando me deito na minha almofada á noite e sinto o perfume dele. E isso magoa mais ainda do que saber que ele morreu."


In: Sopro de Luz

14 de outubro de 2012

A Lua

Quando olhei
O sol já se pusera
A noite viera
Lentamente
Foi envolvendo aos poucos
A rua
Foi devorando os sons e os silêncios
Foi-se extinguindo a luz e depois,
Lentamente, a escuridão
E a lua já brilhava
Lá no alto, cândida, fria
Era ela,
Era ela quem ansiava
Já sabia que viria
Dominou por completo o meu caminho
Foi surgindo de mansinho,
Vinda do nada.
Era noite feita luz
Era noite feita vida
Viria ela para a despedida?!
Que companhia desejada.
Ela muda, calada
E apenas assistia.
Pela sua palidez manchada
Diria não estar enganada
Ao pensar que pressentia
Lançou quase propositadamente
Um raio na minha direcção,
Como que a iluminar a mão
Que a arma continha.
Esbocei um sorriso
Em sinal de compreensão.
Da lua foi um gesto em vão…
Já nada me impediria.
Ela, cândida, fria,
Muda, calada, assistia
Foi momento de revelação.
Um mocho piou
Uma nuvem passou
A escuridão…
De novo a vontade
Sentei-me no chão
Olhei a lua
Na sua imensidão
Disparei, caí
Fim de noite
Final de canção.


9 de outubro de 2012

Sonho Palavras Livres

Pergunto-me se algum dia alguém vai ouvir os gritos que a minha caneta risca no papel... Se o mundo algum dia vai conhecer as palavras que me rasgam.
Sonho, sei que sonho e que os sonhos também contam.
Mas estarei porventura sempre muda perante o mundo que se crispa no barulho constante da sua rotação?
Enrugado e macilento em contraste com as cores que o pintam.
Não quero ser mera letra solta, nota na pauta escondida num qualquer baú apodrecido no sótão das memórias.
Sonho, sei que sonho. Mas não é sonhar metade do caminho para ser?
Junto as palavras que me habitam, como rebanho tresmalhado que um pastor há muito abandonou.
Vejo-as percorrer os longos vales e serras que compõe a minha existência.
Por vezes quebro. Perco uma vogal que forma o meu grito.
E sonho, sei que sonho e que o sonho me acalenta.
Pergunto-me se verei a contracapa que me acolha.
Se poderei algum dia acariciar a lombada que me defina.
Desfolho em mim tudo o que sou. Página por página vou-me esvaindo, até nada mais restar do que um borrão de tinta.
Sonho? Já não sei se sonho. Sinto que sequei o tinteiro que me materializava. Embora em mim, flua um rio sem fim de palavras.
Sonho? Penso que sonho. Que ainda se não acabaram as folhas, por muito que as tentem incendiar.
Sonho? Sim sonho. E em sonhos sou palavra livre.


8 de outubro de 2012

Passos nas Nuvens 2

No dia seguinte, de manha fomos todos a missa. A minha mãe tinha estudado numa escola católica só de meninas até aos 17 anos, quando saiu para ir servir em casa de um casal que precisava de uma preceptora para as filhas, dando explicações e catequese. Esteve ai até quase aos vinte anos quando saiu para se casar com o meu pai. Assim , fazia questão de que a família fosse toda junta a missa de domingo pelo menos uma vez por mês e era também por essa razão que eu e o meu irmão estávamos na catequese.
No momento em que chegamos, o coro já estava pronto do lado esquerdo do altar. Dirigi-me de imediato para junto deles. Á medida que percorria a nave da igreja, sentindo o aroma inebriante a cera de velas e flores, misturado com o de inúmeras aguas de colonia e naftalina dos casacos das velhas senhoras sentadas nos bancos da frente, não conseguia deixar de ficar extasiada com a imensidão do espaço, com a beleza e candura nos rostos de  porcelana dos santos que ladeavam o altar. Tudo me parecia enorme e celestial no brilho tremulo das velas que dançavam no estonteante altar, reflectindo a ostentação de folha de ouro que cobria quase todo o interior da igreja. Mas para mim tudo era magia pura.
 Com os meus 11 anos a única razão, paralelamente ao facto de ser uma condição obrigatória da minha mãe, de eu gostar de frequentar a igreja, era o que sentia dentro dela. Era o que sentia quando cantava, juntando a minha voz ao coro. Ao primeiro acorde da viola, já o meu coração estava cheio de calor e alegria. Sentia um conforto automático, quase como um abraço  ternurento ao ouvir as nossas vozes elevarem-se na acústica mágica e ecoarem do altar até a porta principal.
Posicionei-me no meu lugar e lá estava o miúdo do dia anterior, mesmo a minha frente, de viola na mão. Olhou-me nos olhos e desta vez os seus lábios acompanharam num sorriso o brilho quente dos seus olhos.



4 de outubro de 2012

Passos nas Nuvens 1

Sinto o suor na palma das mãos enquanto tento acalmar a Mara que treme e soluça ao meu lado. Mais um solavanco e todo o avião se enche de gritos e choro. Do lado direito do corredor, mesmo na fila ao lado da nossa, duas freiras rezam ferverosamente. Nos lugares em frente a elas estão o Cláudio com os gémeos.
O resto do nosso grupo foi no voo da manhã com a Marta e os restantes monitores.
O meu irmão ligou-me quando o voo da namorada já tinha saído de França em direcção ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro. O grupo foi dividido em 2. Era a única forma de ficar a este preço. A viagem ao parque da Disney tinha sido fantástica mas muito dispendiosa, assim, quando surgiu esta oportunidade de economizarmos dinheiro na volta, caso alguns de nós viajássemos separados, ocupando lugares por preencher noutros voos, aproveitamos. O dinheiro colectado durante o ano ao longo das festas, missas e convívios, e cantares de janeiras e natal não chegava para levar os miúdos dos 6 aos 17 anos que faziam parte do pequeno grupo de jovens e crianças onde eu, o meu irmão, a namorada dele a Marta e o irmão dela o Cláudio, somos monitores. A nossa igreja ainda deu algum dinheiro, mas ao longo do ano houve despesas e a viagem do grupo de 18 miúdos, com mais 5 monitores causou uma despesa acima do esperado.
A Marta mandou a mensagem ao Miguel a avisar o namorado da partida do seu voo. O meu irmão que teve de ficar em terra a participar numas palestras a fim de conseguir melhorar as nossas instalações, e se possível arranjar uns instrumentos novos, tinha o telemóvel desligado e quando viu a mensagem já a Marta estava a caminho com o grupo dela.
Quando ele me ligou expliquei-lhe o porque da divisão do grupo e que eu e o Cláudio tínhamos ficado com os gémeos e a pequena Mara de 10 anos, a mais nova do grupo, á espera do próximo voo. Íamos chegar com 4h de diferença em relação ao outro avião.
Uma nova turbulência faz inclinar o avião. A voz do piloto soa quase imperceptível por entre os gritos. A mara enroscou-se a mim e agora sinto os seus sedosos cabelos finos por entre os meus dedos, enquanto lhe afago a cabeça e tento perceber o que o piloto diz.
“Senhores passageiros, estamos a enfrentar uma zona de turbulência, vamos desviar-nos um pouco da rota e alterar a nossa altitude.”
As luzes apagaram-se por instantes e procuro na penumbra encontrar Cláudio e os miúdos. O sinal de manter os cintos já se acendeu há muito tempo mas a minha vontade é tirar o meu e ir a correr procura-los.
As hospedeiras andam para trás e para a frente ao longo do corredor a tentar acalmar-nos, mas quando uma passa por mim penso detectar a preocupação no seu olhar.
Nesse momento uma nova guinada faz o avião inclinar todo para a direita, e a minha carteira, junto com mais uns objectos dos passageiros da esquerda são lançados contras a fila do lado. As hospedeiras deixaram de passar no corredor e estão agora também elas sentadas e de cintos postos. Olho pela janela mesmo por cima da asa e a imagem da asa a dobrar arrepia-me totalmente. Beijo a nuca da Mara enquanto lhe murmuro.
- Está tudo bem. Daqui a pouco volta tudo ao normal. - mais para me descansar a mim do que a ela.
Mal falo, nova perturbação agita o avião. Estamos a perder altitude me parece.
Acendem-se as pequenas luzes dos bancos e consigo finalmente encontrar os Gémeos. E o meu olhar encontra o de Cláudio nesse mesmo instante. Um olhar que diz tudo o que o silencio não consegue dizer. Um olhar inflamado e brilhante como que iluminado por chamas. Chamas? Ele aponta para mim. Não entendo. De repente gritos parecem sair do meu peito. Demoro apenas alguns segundos para perceber que é a Mara, ainda ao meu colo que grita a apontar para a janela. A asa do nosso lado está a arder.