Translate

31 de janeiro de 2013

Passos nas Nuvens 5

 O moinho permanecia de pé, imponente, já sem uma única viga de telhado, mas de paredes intactas. A azenha tinha já sido parcialmente destruída pelo caudal do rio que subia nas fortes chuvas de Março.
Calcando as silvas e trepadeiras que dominavam o chão e a porta, avancei. Afastei a porta, que se encontrava apenas encostada ás pedras da parede e entrei.
O espaço, iluminado pela lua que brilhava por cima do telhado inexistente, tinha sido tomado de assalto por trepadeiras.
Usei a luz do telemóvel para me guiar por entre os barrotes caídos e cobertos de musgo e fungos.
Tacteei a parede húmida e viscosa, arrancando heras até encontrar, inalterável, o meu nome gravado.
Passei os dedos nos sulcos, relembrando as palavras do Cláudio naquela noite: “Ficas gravada aqui também, tal como estarás sempre gravada no meu coração.”
Uma promessa feita por duas crianças que começavam a descobrir a paixão. Juras feitas nas lágrimas e nos beijos. Juras que eu desejava serem eternas.
Mas a realidade atingiu-me em cheio no peito.
Abracei-me. Tremendo, apertei as costelas com força a tentar reprimir os gritos, os urros de raiva. Mas de nada me valeu.
As lágrimas caíam, grossas e cheias de corpo, cheias de dor e intermináveis.
Gritei até me doer a garganta e o peito.
Gritei até não conseguir mais respirar sem sentir pontadas de dor nas costelas. E depois parei.
Tudo parou. O vento parou, parou o ribeiro, a minha respiração. Não se ouvia um ruido, não se via um movimento. Ficou tudo calmo como o céu depois da tempestade.
Pisquei os olhos, agora acostumados a semiobscuridade do espaço.
Um raio de luz partia do meu telemóvel, iluminando um caminho onde pequenas partículas suspensas dançavam, numa dança sem ritmo próprio.
Tinha as calças todas molhadas do tronco onde me sentara.
Retirei o papel dobrado que tinha na carteira e auxiliada por uma fresta na parede onde encaixei o telemóvel a iluminar-me, comecei á procura de qualquer resposta capaz de me acalmar, contemplada nas folhas que tinha nas mãos.

“Erica, sei que nada do que te diga poderá minimizar o sofrimento a que te expus. Mas acredita que a dor que sinto, o ódio que me assola é por si só, pena para tamanho crime.
Acredita que a dor que vi nos teus olhos, me trespassou com a força de mil tiros.
Senti-me porco, sujo, não só por mim, mas acima de tudo por saber ter-te feito sentir dessa forma. Por saber ter destruído a perfeição que em ti existe.
Queria ter conseguido falar antes, explicar que estou de compromisso, numa tentativa de fechar a ferida gravada com a tua ausência.
Uma ferida com a forma do teu nome gravado em mim, como em tempos o gravei no velho moinho.
A Sara foi-me apresentada pelo meu pai.
É filha de um sócio de uma empresa que o meu pai pretende comprar.
Saí com ela, a pedido do meu pai, pela primeira vez depois de regressar no natal. Depois de regressar do nosso mundo, de me ter perdido nos teus braços.
Estava frágil, tu ocupavas os meus pensamentos de dia e de noite eras presença constante nos meus sonhos.
Não te servirá com certeza de consolo, mas preciso confessar-te que era em ti que pensava quando estava com ela.
Eram os teus lábios que eu saboreava, o teu corpo que eu tocava…
Vivia com o substituto de uma droga que me viciava. Que nunca me saciava, nunca me servia.
Deixei de ouvir a tua voz, as nossas conversas eram cada vez mais raras, as mensagens foram escasseando e a Sara estava lá. Presente, carinhosa. Colmatando o espaço que ficara entre nós. Sei que não me queres ouvir falar dela, nem eu tao pouco tenho mais o que falar.
Nunca te quis magoar e parto agora com a certeza de uma dor que me vai seguir para onde quer que eu vá.
Fui fraco. Fraco por aceitar um compromisso com alguém que apenas minimiza a dor de não te ter. Fraco por não ter tido coragem de te contar. Fraco por não lutar por uma resposta tua, por não ter lutado por ti.
Mas acima de tudo, fraco por ter desejado uma última vez ter-te nos meus braços, sentir a tua pele, devorar os teus beijos, sem que tu soubesses que seria uma despedida.
Não ocupes o teu coração com odio por mim, peço-te. És melhor do que isso, perfeita de mais para isso.
Se esta carta não servir para acalmar a tua mente, silenciar as tuas perguntas, que sirva para teres a certeza que a tua dor é partilhada. Que o teu nome estará sempre gravado no meu peito, mantendo os golpes profundos a sangrar.
Acima de tudo que sirva para saberes que não te podes culpar de nada. Que não te podes culpar de eu, mesmo sendo um fraco, te adorar como adoro.
Adoro-te”


In "Passos nas Nuvens"

24 de janeiro de 2013

Luz

Tenho em mim
A luz do mundo
As cores todas
Que a vista alcança
Mas na vertiginosa viagem
No rodopio desta dança
Na velocidade de um Ai
Que do peito é arrancado
O remoinho de cores
Num véu negro transformado
A luz extinta, de um raio
Que o véu atravessou
Que roubou a luz ao dia
Que do sonho me arrancou.
No carrossel que é a vida
Nesta viagem tão fugaz
Em que as cores se confundem
Nas cores que a luz traz.
Tenho em mim a luz do mundo
Em mil cores transformada
A luz é fraca, o negro é tudo
Em mim, a luz é nada.

3 de janeiro de 2013

Passos na Nuvens 4

Vejo o meu nome escrito na parede onde o Cláudio o desenhou.
A eminência do seu ser. O frio da pedra na minha pele.
Relembro o toque áspero e poroso da tinta que reveste as paredes onde as minhas costas roçavam na cadência dos movimentos dos nossos corpos.
Passo os dedos pelas letras gravadas em entalhos fundos na parede de pedra, que se desfaz ao toque, em lascas de tinta branca.
Estava tanto frio nessa noite.
Mas o seu toque aquecia-me, os seus beijos faziam fervilhar o meu sangue.
E da poção fervilhante de saliva, caricias suaves, o toque áspero da parede e o suor dos nossos corpos nasceu a noite mágica que para sempre nos uniria na recordação.
A festa decorria com normalidade.
O nosso grupo dançava na pista, ao som do grupo de baile.
Eu tinha 16 anos, quase 17 e o Cláudio festejava os seus 18 anos.
A festa tinha começado em casa dele as sete da noite, com um jantar para o grupo mais próximo de amigos. O pai dele tinha-lhe enviado umas caixas de champanhe e um cheque que o Cláudio usou para alugar o espaço da Associação da vila.
Localizado do outro lado da vila, no cimo de um morro, no meio de lugar nenhum, era o sitio ideal para festas de horas tardias.
Depois do jantar fomos até ao pavilhão, já preparado com o palco montado e o bar improvisado no canto.


Eram já 3 da manha. Estava uma noite de nevoeiro cerrado e o frio penetrava nas meias grossas que tinha por baixo do vestido preto de malha.
Tinha já bebido ao jantar e ali, com bar aberto, todos abusaram um pouco.
Vim até a rua apanhar um pouco de ar e juntei-me ao grupo da Ana que se encontrava sentado no muro de pedra.
Conhecia apenas um rapaz e a Ana, que rapidamente me apresentou o resto dos amigos.
O jantar tinha sido só mesmo para o grupo restrito mas a festa era aberta ao publico. Quase a escola em peso estava no espaço.
A Ana apresentou-me o pedro, irmão mais velho do namorado.
O pedro era um rapaz alto, dos seus 20 anos. Olhos negros e misteriosos, com um brilho e uma sagacidade estonteantes.
De imediato começamos a falar, enquanto um a um, o resto do grupo foi entrando. Nós fomos ficando, sentados no muro a discutir sobre cinema.
O Cláudio saiu e olhou para mim, entrando de seguida.
Contei pelo menos 3 vezes que ele saiu e voltou a entrar sem dizer uma palavra.
O frio aumentava, o nevoeiro estava cada vez mais cerrado. Eu e o pedro decidimos entrar um pouco. Ele foi directo ao bar onde pediu dois copos para nós. O Cláudio apareceu ao meu lado.
-Pensei que era a minha festa, mas afinal não sou eu quem tem todas as atenções. -Sorriu e voltou para a pista, onde foi de imediato rodeado por um grupo de raparigas.
O Pedro entretanto tinha chegado ao pé de mim.
-Voltamos lá para fora?
Estivemos mais de meia hora a conversar, tempo durante o qual o irmão dele nos trouxe mais dois copos.
O álcool afastava o frio e o entorpecimento que causava, fazia-me ignorar o passar do tempo.
O nevoeiro formava agora cortinas espessas, que não permitiam ver nem as luzes da vila, ao longe.
O Cláudio saiu com duas raparigas e foram até ao parque de merendas por detrás do pavilhão.
Não sei quanto tempo passou até ele voltar.
-Erica, vou embora… Já falei com toda a gente. Quem quiser ficar, pode ficar. O Edgar tem a chave e disse que fecha o pavilhão quando todos saírem.
Ficou calado. De mãos nos bolsos, ao nosso lado.
Eu abanei o copo na mão, em movimentos circulares, observando o rasto brilhante e espesso que o álcool desenhava no vidro, em ondas que se dissolviam em segundos.
O Pedro e o Cláudio trocaram algumas palavras. As duas raparigas saíram com as carteiras na mão. O Cláudio despediu-se do Pedro e esperou alguns segundos, a olhar-me nos olhos, até desaparecer colina abaixo com as duas raparigas.
O nevoeiro engoliu-os de imediato, deixando-me sozinha com o Pedro.
O álcool começava a deixar-me tonta, cansada e com frio.
O Pedro foi-se aproximando de mim, deixando-me desconfortável, mas não me afastei.
A Ana veio dizer que se queriam ir embora e o Pedro ofereceu-me boleia, mas algo me fez recusa. Talvez a forma como me tocava no braço ou o olhar que me lançava.
Assim, dei por mim sozinha, no meio da escuridão da nevoa impenetrável que rodeava todo o local, negando à luz, espaço para brilhar.
Podia ir com o Edgar, só teria de esperar até ele querer ir embora. Mas não me estava a sentir bem.
Sentia-me dormente e com vontade de chorar. O meu coração batia num compasso desenfreado, alternado com apertos fortes, como se quisesse ao mesmo tempo saltar-me do peito e parar de uma só vez.
Fui avançando pelo nevoeiro. Confesso que a escuridão me assustava e desorientava. Comecei a temer não encontrar o caminho para casa.
As gotículas de névoa prendiam-se no meu cabelo e gelavam-me o rosto.
Peguei no telemóvel, preparando-me para ligar para o Edgar. O telemóvel dele estava desligado. Nesse instante recebi uma mensagem “Diz ao Edgar para deixar a chave na minha caixa de correio.”
Respondi ao Cláudio que não estava com o Edgar, que ia a pé para casa.
Ele ligou-me de imediato.
-Erica onde estás? Então mas o Pedro deixou-te sozinha?
Eu não sabia muito bem onde estava. O nevoeiro não me deixava perceber o caminho. Ouvia o som próximo do ribeiro e presumi estar junto da azenha e do velho moinho.
O Cláudio já estava em casa mas saiu de imediato no meu encalço.

Dez minutos depois ouvi a voz dele a chamar o meu nome por entre o nevoeiro.
Chamei-o de volta e quando ele me alcançou, o meu corpo recebeu um choque que de imediato me fez começar a chorar compulsivamente.
Ele abraçou-me afagando o meu cabelo, prendendo os dedos no emaranhado provocado pelas gotas de nevoeiro que nos envolvia.
-Oh Erica- murmurou com os lábios colados ao meu ouvido. – Desculpa ter-te deixado ali. Juro que nunca mais te largo.
Tomada pelo álcool ou pelo susto, não sei, ergui-me em bicos de pé e beijei-o.
As grossas lágrimas quentes escorregavam pelo meu rosto, até ao pescoço que o Cláudio cobria de beijos.
Eram cinco e meia passadas e o sol começava a lançar os seus raios, como pequenas lanças de luz que rasgavam o nevoeiro, aqui e ali, conferindo á noite, uma mistura de dourados e prateados que nos envolvia.
Fomos avançando, abraçados, trocando beijos, ate ao ribeiro de onde se elevavam pequenos remoinhos de fumo prateado.
Ouvia-se o rio borbulhar por entre o silencio da madrugada. Silencio que ia sendo quebrado pelo chilrear dos primeiros pássaros da manha e pelo coaxar das rãs.
Encostados á parede do velho moinho, fomos saboreando o gosto quente e peculiar dos lábios um do outro.
 O Cláudio pegou-me na mão e empurrou a velha porta de madeira que, depois de dois pontapés, deslizou, permitindo-nos passagem.
As paredes caiadas de branco, com as fendas abertas pelo tempo, onde os musgos e os fungos se tinham instalado, brilhavam com a humidade do ar.
No entanto o frio que senti quando o Cláudio me beijou sofregamente, empurrando delicadamente o meu corpo contra a parede, foi meramente superficial.
Senti um calor percorrer-me o corpo desde a espinha até á nuca e que se intensificava á medida que nos íamos aproximando mais e mais.
-Adoro-te. – disse, olhando-me nos olhos, enquanto deslizava a mão pela minha cintura até á minha perna, levantando-me um pouco do vestido.
Parou, como que esperando permissão ou negação.
Nada fiz para o impedir. Beijei-o.
Não havia frio capaz de nos parar, capaz de evitar o ritmo acelerado com que as nossas roupas se foram soltando do nosso corpo.
Ergui o rosto para o alto, abrindo os olhos por momentos. Por entre as vigas de madeira do tecto, parcialmente destruído, num único ponto mágico em todo o céu, onde o nevoeiro não alcançava, vi uma estrela. A única estrela no céu de Inverno que testemunhou o momento em que eu e o Cláudio nos tornámos um.

O frio dominou os nossos corpos cansados e despidos, obrigando-nos a vestir o mais rápido possível.
Passado o fogo da paixão, restou apenas o suor que prendeu os nossos perfumes no corpo um do outro.
-Está bem? – perguntou-me olhando-me nos olhos, prendendo-me num abraço de castanhos e cinzas.
-Estou feliz. – Respondi, devolvendo-lhe a sweat de carapuço que estava junto a mim, no chão.
-Agora tudo parece mais certo, mais real, mais verdadeiro.
Sorri ao ouvi-lo. Ele retirou o canivete do bolso e com a ponta escreveu o meu nome na parede.
-Assim ficas gravada para sempre aqui também, tal como estás gravada no meu coração.
Abracei-o, sentindo também que tudo estava mais certo, que as cores estavam mais vivas, os sons mais melodiosos.
Á porta de casa, depois de dez minutos a pé, abraçados um ao outro, beijou-me.
Entrei em pés de lã. Já não faltava muito para  aminha mãe estar a descer para a cozinha, para preparar o pequeno almoço.
Tomei um banho com agua a ferver, vesti o pijama e deitei-me. Envolvida no sonho que era agora uma realidade gravada em mim, no Cláudio e numa parede gasta.