Translate

22 de novembro de 2012

Sopro de Luz 9


"Eliana passou pelo casal no parque, que, de mãos dadas, aproveitavam os raios de sol que aqueciam o fim de tarde do mês de Maio que prometia ser dos mais quentes dos últimos anos.
Uma nostalgia dominou-lhe o peito, apertando como uma dor aguda.
Sentou-se no banco de madeira junto do lago, com a mão sobre o peito. Sentia o coração bater muito rápido, num ritmo forçado e inconstante.
Apertou uma mão na outra, com força, com os dedos entrecruzados.
Como sentia a falta desse gesto. Dessa partilha de espaço e existência na forma de um toque.
Abatida levantou-se, avançou para a passadeira que atravessou feita autómato, num contacto involuntário com as pessoas que a acompanhavam.
Do outro lado da rua, na vitrine da loja de artigos de música, viu o seu reflexo. O olhar vazio e negro de quem se afogara dentro da sua própria côr. Passou os dedos no cabelo ondulado, tentando compor o que o vento tinha destruído. Tomara conseguir mudar o vazio que a dominava, com um simples passar de dedos.
O sol lançou um dos seus raios quentes na direcçao da vitrine, fazendo brilhar no seu dedo, por entre os cachos de cabelo escuro, o anel prateado. Eliana retirou-o, sentindo ao mesmo tempo o seu peso desaparecer e o peso da saudade aumentar.
Durante as actuaçoes custava-lhe sempre ter de o retirar, e ainda mais lhe custava quando Luís deslizava no seu dedo, o anel de fantasia de Adael.
Mas naquele momento experimentou um sentimento diferente.
Um misto de alivio e culpa. Já passava um ano e quase 4 meses. Quase um ano e meio de um peso emocional que a desgastava fisicamente.
Eliana encontrava no anel não só a recordação material do amor que lhe fora roubado, como também o circulo inquebrável de sofrimento e dúvidas.
Encerrava-se nessa vedação de prata, sendo ao mesmo tempo carcereiro e chave de uma realidade que a restringia e dominava.
Olhou o dedo, desprovido do elo que já tomara como parte de si.
Ao contrario do que esperava, não se sentiu incompleta. Pelo contrario sentiu-se una com quem fora e com quem desejava ser.
Arrumou o anel no bolso da túnica creme que trazia.
Avançou por entre a multidão de jovens que se encontravam a aproveitar o sol, agrupados nos bancos da avenida, enquanto observavam os restantes que se exibiam em cima dos skates.
Parou, observando a fachada do prédio do teatro. Involuntariamente, num reflexo quase natural, deu por si a espreitar para o parque de estacionamento, na procura de algum carro familiar."

In: Sopro de Luz

20 de novembro de 2012

Sopro de Luz 8

"Eliana sentiu o peso de David atrás de si quando este se inclinou para lhe segredar ao ouvido , apoiando as mãos sobre as costas da cadeira onde ela se encontrava.

...

David tinha retirado uma porção de cabelo de Eliana, afastando-o do seu pescoço, para poder falar-lhe ao ouvido. Ela estremeceu ao sentir o toque dos seus dedos a tocar ao de leve no lóbulo da sua orelha. Sorriu e voltou de novo a sua atenção para o palco.
Dez minutos passados e foi intervalo. Saíram todos da sala deixando apenas Eliana e David que, puxou para si a cadeira do rapaz que estava ao lado de Eliana e que saíra.
-Acho que não deixámos indiferentes nem o público nem o júri. – começou David. – A julgar pela reacção, pelo menos o prémio atribuído pela plateia é nosso. E devo dizer-te que tenho a certeza que o prémio de melhor representação feminina vai para nós também… estiveste fantástica. Nos ensaios eras sempre convincente e incrível, mas hoje estiveste perfeita.
Eliana sentia-se corar e desejava que o contador da luz rebentasse naquele mesmo momento para poder ficar na protecçao da escuridão. David aproximou um pouco mais a cadeira, colocou as mão sobre os joelhos, palmas viradas para baixo, pendentes junto dos joelhos dela.
Eliana pensou que a qualquer momento elas lhe iram tocar, pelo que susteve a respiração, não ousando mover as pernas um milímetro que fosse.
David continuou.
-Houve um momento, quando entras-te com o vestido, em que eu tive dificuldade de me concentrar. Eu que nunca me perco da personagem. Quando estou em palco não sou eu, é a personagem. Sou fechado a tudo o que me rodeia. Mas tu quebras-te isso. Parecias envolta por uma aura, como se realmente fosse Adael ou um qualquer ser sobrenatural quem entrou em cena e não tu.
Eliana sentia os joelhos tremer devido á força que fazia para manter as pernas imóveis. David tinha ficado igualmente estático. As cadeiras muito juntas, os seus corpos quase a tocar-se. Olhar fixo no seu, com um brilho a acentuar o verde que ela já tão bem conhecia.
Eliana ouvia a pequena voz que agora, ao invés de sussurrar, gritava ao seu ouvido. A voz que já não conseguia calar, que não podia negar ouvir. As palavras que se  recusara a proferir durante tanto tempo e eram agora parte de si.
A porta abriu-se nesse momento e os rapazes aproximaram-se dos seus computadores.
David levantou-se cedendo o lugar e foi encostar-se á máquina de projecçao no outro lado, ao coberto da escuridão. Mesmo não o vendo, Eliana tinha a certeza do seu olhar cravado em si."


In: Sopro de Luz

14 de novembro de 2012

A minha mente

Sinto o embalo tornar-se forte
De cândido a tempestivo.
Corro as vielas na minha mente
Na procura de bom abrigo
Calcorreando pelos becos
Por caminhos já esquecidos
Que ganham vida em cada passo
Falando como velhos amigos.
Elevando as suas vozes
Que ecoam por entre ruelas
Passando de vozes a gritos
Que estilhaçam portas e janelas
E ouço vozes que gritam
Palavras que recuso ouvir.
Que se elevam por entre escombros
Das quais não consigo fugir
Procuro por entre vielas
De caminhos corrompidos
Vejo-me rodeada
Por sonhos destruídos.
O trovão que ribomba
O tremor que me faz vacilar
A venda negra esticada
Que me impede de sonhar
E a minha mente oscila
Entre a perturbação e a quietude.
Nego-me a ouvir as vozes.
Dormir talvez ajude.
Mas não durmo sem sonhar
Um sonho de monstros povoado
Em que presa na minha mente
Sou desejo inacabado.
E abro os olhos em mim mesma
De restos feita e moldada
Procuro por mim completa
Só encontro um resto de nada
Rodeada pelos escombros
Da minha mente destruída
Procuro, vagueando
Pelo rasto da minha vida

4 de novembro de 2012

Ser feliz

Modo limpeza;
Juntar as peças que me fazem bem e as outras, as que não consigo encaixar, livrar-me delas.
Algumas já se perderam. Fazem-me falta. Como partes de um imenso todo ao qual sinto já não pertencer.
Não conseguindo completar os espaços, recolho o que tenho. Junto a recordação da imagem formada e esqueço.
Tento toda e qualquer combinação, na procura da totalidade que vislumbro, no conhecimento imperfeito de uma realidade que desejo completar.
E se alguém me perguntar se sou feliz, posso  apenas responder: "tenho por objectivo tentar sê-lo!"
Sobram peças? Não importa. Para perceber que sobram, tive de completar a tela. E agora, feita, perfeita sonhada, é o reflexo do meu desejo.
Esquecer aos poucos o esforço de concluir, atingir, completar o meu objectivo. Ver de longe a totalidade do que construi.
E por uma vez, sem o peso do que não consegui completar. Realizada por ter tentado. Poder dizer: "Se sou feliz!? Vou sê-lo"