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26 de fevereiro de 2013

Passos nas Nuvens 6

"No escuro que me rodeava, presa por inteiro no mundo que me envolvia, não consegui mais segurar o meu pensamento. E toda a minha mente foi dominada pela presença do eco que povoava o meu peito. O fumo sem textura, sem consistência, ia rodopiando, ganhando forma, uma forma humana. E em segundos ele ali estava, mesmo ao meu lado, ocupando todo o espaço, fundindo-se com o meu ser e a natureza que me rodeava. A imagem do Cláudio tornou-se de novo real e presente.

As circunstâncias ditavam sempre o nosso afastamento. Naquela última noite no acampamento,anos atrás, ambos sabíamos que a partida estava eminente.
O Cláudio tinha conseguido estagiar na empresa do pai, no grupo de marketing e publicidade. Viria depois a tornar-se o mais novo gestor de campanha com apenas 21 anos.
Eu tinha concorrido á universidade de jornalismo e entrado e os fins-de-semana passados em casa iriam agora perder o sabor sabendo que ele não estaria á espera na passagem com aquele sorriso quente e o olhar profundo e brilhante.
Estávamos responsáveis por ajudar os miúdos mais pequenos no banho. Eu esperava na porta das raparigas e o Cláudio na dos rapazes.
As miúdas saiam e eu tinha de entrar para me certificar que tinham deixado tudo arrumado e não esqueciam nada lá dentro. Secava e penteava cabelos. No final quem precisava de um banho era eu.
Saí da casa de banho rodeada de vapor, para enfrentar o ar frio de Outubro. Vesti-me ainda dentro do cubículo do chuveiro e depois, de toalha enrolada no cabelo, aproximei-me do lavatório onde ainda tinha o secador ligado.
O Cláudio estava á minha espera encostado ao poste da entrada.
Nós tínhamos decidido não prosseguir com o nosso namoro, por sabermos ser difícil manter um relacionamento á distancia. Eu com 19 anos e ele com 20, em idades complicadas e com mundos de descoberta á nossa espera, pensávamos assim evitar dissabores e conseguir manter uma amizade pautada por recordações de coisas boas.
Sequei o cabelo e arrumei o estojo preparando-me para sair e voltar para junto do grupo.
A Vanessa tinha o jantar pronto. Ela e o Edgar iriam tomar banho só depois de comer, podíamos assim revessar-nos. O Vasco tinha já preparado a cama para a Tininha, que se encontrava sentada na entrada da caravana, numa cadeira de praia azul.
O Cláudio puxou-me por um braço assim que me aproximei dele.
-Anda, quero mostrar-te o que descobri.
Embora soubesse que o melhor era manter uma distância confortável dele, aceitei segui-lo.
Avancei pelo meio da vegetação, com a mão dele a puxar-me e a outra mão ocupada pelo estojo e pela roupa dobrada sobre o braço.
-Mas onde vamos? Está escuro, não vejo nada. Ainda nos vamos perder Cláudio.
Um chorrilho de desculpas e perguntas, saia-me pelos lábios, cortando o silêncio que nos rodeava.
-Cláudio, estão a nossa espera para jantar. Sabes que a Tininha tem de jantar cedo e ir descansar.
O Cláudio olhou para trás, sorrindo-me sem nunca parar de avançar.
Parámos numa clareira. As copas das árvores que ladeavam o espaço formavam um círculo perfeito, envolvendo-nos numa espécie de realidade paralela ao mundo onde estávamos inseridos.
-Não é lindo? – Perguntou, olhando-me nos olhos. Largou-me a mão e avançou alguns metros. Olhei para o céu, a toda a nossa volta era escuridão completa, densa. Parecíamos isolados da realidade, colhidos por um micro habitat onde, por alguma razão, eu sabia pertencer.
-É lindo Cláudio. Amanhã temos de trazer os miúdos para aqui. Podem correr, jogar a bola…
O Cláudio cortou-me palavra.
-Erica, eu trouxe-te a ti, só a ti. Quero que este sítio seja só nosso, um segredo, um porto onde regressar mesmo que a maior das tempestades se abata sobre nós.
Aproximou-se beijando-me com doçura.
E o contrato por nós feito perdeu valor, a decisão tomada de forma tão decidida deixou de ter importância. O Depois não existia e eramos o resultado de um Antes abraçados no desejo do Momento. Não fizemos perguntas, não questionamos consequências, não importava o adeus eminente. Bastava-nos aquele nosso mundo mágico, rodeado de negros que nos isolavam e permitiam sermos banhados pela luz de um céu limpo e carregado de estrelas.
Entregue nos seus braços, sentindo o gelo da noite penetrar-me na pele, quase fizemos amor. Eu sentia o meu corpo clamar por mais e mais caricias, mais e mais beijos. Sabia estar nas mãos sabedoras do meu ser. Conhecedoras do caminho que já antes percorreram.
O sabor a orvalho confundia-se com o sabor da nossa saliva.
O frio impedia-nos de nos demorarmos em caricias e trocas de toques.
O Cláudio beijava-me, presa no seu abraço, e eu, tomando consciência das implicações daquele momento, tentava afastar-me procurando o estojo que entretanto largara algures.
-Erica. Olha para mim. – pediu-me estendendo-me a mão.
Eu olhei-o nos olhos. Olhos cheios de tristeza, na espera de conforto da minha parte. Na espera de um abraço, de uma certeza que tudo estava bem, que tudo ficaria bem.
-Cláudio, isto não devia ter acontecido. Nós tínhamos combinado que devíamos afastar-nos. Que era o mais certo para nós.
-E tu não sentes que isto é certo? Consegues pensar que é um erro?...
O olhar dele transbordava de dor com uma luz que nunca tinha visto. Um brilho que era para mim totalmente desconhecido. Um tom de castanho que até então ele guardara só para ele e que nesse momento sabia ser só para mim.
O meu coração apertou, e um arrepio desde a nuca indicou-me o que eu preferia negar e esquecer. Eu seria sempre especial para ele e ele para mim. Mas tínhamos de chegar a um final. Aquele precisava ser o nosso final.
-Cláudio eu adoro-te e tu sabes disso. Mas é injusto estar a privar-te de novas possibilidades, de encontrares a felicidade.
-Eu já encontrei a minha felicidade. – Disse ele num grito.
-Não me interrompas por favor. – Sabia que se não conseguisse dizer tudo de uma vez, iria perder a confiança na minha decisão. – Preciso dizer-te tudo. Preciso que me ouças. Eu adoro-te mas vamos entrar em mundos diferentes. Diferentes do nosso, diferentes de nós. E não é justo negar-te essa experiencia. Não ia aguentar que te sentisses preso a mim e um dia encontrasses alguém que te podia fazer feliz e me culpasses por não teres tentando essa felicidade.
O Cláudio abraçou-me, beijando-me a nuca.
-Adoro-te. – Murmurou, afagando-me o cabelo.

Passei as mãos pelos braços, num abraço frio de conforto. Peguei os garrafões que estavam pousados junto dos meus pés e avancei, na busca da luz e do calor da fogueira que me esperava.
Quando cheguei junto do grupo o jantar já estava a ser servido.
-Estava a apensar que tínhamos de chamar os bombeiros. Tanto tempo? – Brincou o meu irmão.
Sorri-lhe de volta, tentando limpar por completo as imagens e as vozes que durante minutos me acompanharam."


                                      In: "Passos nas Nuvens"

21 de fevereiro de 2013

Ainda Dói.

Dói.
Dói olhar-te nos olhos. Prender-me nessa cor tão tua, tão nossa.
Dói ver-te sem te poder olhar e mais ainda quando tu olhas sem me ver.
Dói. Uma dor tão profunda que faz eco no meu peito.
Dói a tua ausência e mais ainda a indiferença da tua presença.
Dói o som da chuva, lembrando-me de quando estavas aqui.
Dói a luz da lua, sorrindo como me sorrias.
Dói ver as estrelas, o brilho do teu olhar.
Dói ver o meu reflexo nos teus olhos, o teu olhar vítreo e ausente.
Dói saber que me procuras na multidão, tal como te procuro a ti.
Dói desviares o olhar quando finalmente me encontras.

Mas mais do que tudo, dói recordar.

Dói lembrar o tom castanho dos teus olhos, dói a recordação de quando nos olhávamos com tamanha paixão que o resto do mundo se tornava pálido e indefinido.
Dói saber que o vazio que agora sinto, foi outrora totalmente preenchido por ti.
Dói não me ver nos teus olhos, não me sentires na tua pele.
Dói lembrar o teu sorriso quando nos víamos no meio do mundo, tornando-nos no mundo um do outro.
Dói relembrar como fixavas o teu olhar em mim, fazendo desaparecer tudo ao nosso redor. A forma como sorrias…
Dói. Tudo dói por não saber se também eu te causo dor. E dói imaginar que te possa doer.
Dói tentar tornar a tua ausência, o vazio, num mero eco, em mero fumo, em mera recordação.
Dói a luta dentro do meu peito, entre o coração e a mente. Dói a luta entre a mente e os meus lábios, para não pronunciar o teu nome enquanto sonho.
Dói. Por mais que negue, dói.

Mas mais que tudo, dói o simples facto de doer. Porque sei que já devia ter parado a dor há muito tempo. Porque sei não haver mais razões para doer. Porque já não devias ser recordação, eco, vazio ou fumo… Porque já não devias ser dor.

Mas dói.