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27 de dezembro de 2012

A côr de um Anjo 1

Apoio a mão sobre o vidro do autocarro. A mão quase translucida.
Pela janela vejo a paisagem que se desenrola, como um filme em frente dos meus olhos.
Os verdes que brilham ao sol que aquece o mundo para lá do vidro.
O mundo cheio de vidas, no contraste da minha existência.
O meu nome é Celeste e esta é a última viagem de autocarro que farei.

Já passaram três anos desde que fui diagnosticada. Conheço o olhar que me dirigem, sei ler nas entrelinhas do que escrevem nos meus relatórios.
Desde que foi detectado que me preparo para aquele que sei ser o meu fim.
Comecei a fazer estas viagens meio ano depois da primeira operação.
Sentia a vida a pulsar no ronronar do autocarro. Conheci mil vidas. Vidas que vivi e desenvolvi na minha mente, como se fossem a minha.
Vidas que sei que nunca poderei viver.
Apanhei o autocarro em Pombal, irei trocar em Coimbra, para seguir até Viseu onde as minhas sobrinhas de 5 e 8 anos me esperam com um cartaz que passaram a tarde de ontem a pintar. A minha irmã já me contou como elas se sentem orgulhosas do seu projecto.
Tenho quase 45 minutos de espera em Coimbra, entre ligações de autocarros. Como sempre, vou sentar-me na mesa do canto do pequeno bar da central, junto da janela. Vou colocar o caderno de capas negras sobre a mesa e escrever.
Quero contar sobre a menina de 12 anos que se sentou ao meu lado, com um livro de BD na mão e um olhar sonhador.
Chama-se Carla e viaja com a mãe e o irmão de 8 anos, o Sandro.
Ele estava no lugar atrás dos nossos, sentado com as pernas cruzadas sobre o banco. Olhava para mim com um ar muito serio. Ofereci-lhe 1 rebuçado, que ele aceitou meio envergonhado. Continuou a olhar-me enquanto rodava o papel nas mãos e metia o doce na boca.
A Carla apresentou-se e ao resto da família.
Vão a Coimbra visitar o avô que está no hospital.
O Sandro mantinha o olhar preso em mim. Esperou uma destracçao da mãe para se chegar á frente no banco e me tocar no rosto ao de leve.
-És tão linda.
Disse-me tocando com dois deditos no meu rosto.
-És igual á boneca que a mamã tem no quarto. Branquinha e bonita.
A mãe desculpou-se mas eu limito-me a sorrir, pregando de novo o olhar no mundo para lá do vidro.
Só mesmo a inocência e pureza de uma criança para me achar bonita no estado em que estou.
Sempre fui magra, mas agora, com menos 15kg e o brilho baço da doença que me levou a cor da pele e se traduz na palidez macilenta e quase translucida da porcelana, tenho o ar cadavérico do esqueleto que estudámos nas aulas e anatomia.

...


Nasci como o presente inesperado de uma família já por si marcada pelo inesperado.
A minha mãe era uma guerreira. Tinha já tido 3 filhos, todos maiores de idade menos uma, a Maria com 13 anos. Já ninguém esperava um novo bebé. O meu pai tinha emigrado para França e veio a falecer de acidente no ano em que eu nasci.
A nossa casa era humilde, o dinheiro mal chegava para as quatro pessoa que lá viviam, quanto mais para um novo bebé.
A Maria estava prestes a deixar a escola para, também ela, contribuir para a casa.
Os mais velhos já estavam para casar e tudo o que ganhavam servia para começarem as suas novas vidas.
Nasci numa noite de passagem de um cometa. Chamaram-me Celeste por ser como o cometa.
 A minha mãe contou-me que nasci com uma aura brilhante á minha volta e que teve a certeza, no momento em que me depositaram nos seus braços, que seria algo raro e brilhante como um astro celestial.
Fui a preferida dela, sei bem disso. Ela esperava de mim grandes coisas, grandes feitos. Mas o tempo foi tão curto. As oportunidades tao pequenas e as lutas tão longas…
O corpo Celestial que me deu o nome não voltou a passar nesta vida. E nunca o verei passar, sei disso.

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